“O que eu pretendo fazer é tornar a cultura um activo económico”
A frase “o que eu pretendo fazer
é tornar a cultura um activo económico” foi dita com convicção. Numa
entrevista que durou mais ou menos uma hora, feita para este jornal e
para o programa Artes e Letras da Stv Notícias, a Ministra da Cultura e
Turismo, Eldevina Materula, partilhou o que pensa para o sector que
dirige, sobretudo nesta época em que os artistas e os turistas devem
estar recolhidos. Sem deixar de se referir ao que lhe ocorreu quando foi
convidada a assumir as suas novas funções, a Ministra, igualmente,
comprometeu-se em fazer de tudo para suprir as necessidades dos artistas
e garantir o apoio de que precisam. Paralelamente, Eldevina Materula
disse que quer criar condições para que o turismo moçambicano possa
acontecer em todos os sectores de mais variadas formas.
Há 30 anos, iniciou o seu
percurso no universo das artes. Hoje é uma reconhecida oboísta que
colabora com várias orquestras da Europa, América, Ásia e África. Foi
nessa condição que recebeu a confiança de dirigir o Ministério da
Cultura e Turismo. Pode contar o que estava a fazer, onde e como reagiu
ao convite?
Quando recebi o convite de dirigir o
Ministério da Cultura e Turismo estava a caminho de um ensaio que iria
acontecer às 8h da noite. Nesse momento, tive um misto de emoções e
sentimentos. Na altura pensei: porquê eu? Tenho tido o meu percurso
artístico muito intenso e, de facto, nunca tinha pensado em estar na
posição em que me encontro hoje. E, de repente, há dois meses que a
minha vida mudou completamente.
Em algum momento, pensou em não aceitar?
Não pensei em não aceitar, mas,
confesso, pedi tempo para pensar. Pedi para pensar porque, como deve
calcular, eu estava a fazer uma média de dois concertos por semana e com
agenda para o ano de 2020 completa. Além disso, tinha, obviamente,
muitos planos pessoais. Para além dos palcos, eu estava muito dedicada à
actividade pedagógica, que não acontecia apenas em Moçambique. Ao nível
pedagógico, eu estava a trabalhar em três continentes diferentes.
Obviamente que, quando me fazem um convite para assumir o cargo de
Ministro da Cultura e Turismo, a primeira coisa que eu penso, e porque
faz parte de mim, é: vou-me dedicar a 100%, mas, para isso, algumas
coisas terão de ficar para trás. Ponderei, conversei com a minha família
e, depois, disse que sim. Consciente da grande responsabilidade que é
este cargo e do valor que tem a arte e cultura do meu país.
Há vários anos que vive
entre Moçambique e Portugal devido ao seu trabalho como artista e como
directora-artística. Além desta situação, que mais mudanças ocorreram na
sua vida?
Tudo mudou: os meus horários, as
minhas rotinas… antes, pelo menos passava quatro horas por dia a estudar
o meu instrumento, a estudar ou a preparar-me para os meus
espectáculos. Neste momento, a minha vida resume-se em Boletins da
República, acórdãos, leis, Coronavírus, o povo moçambicano, a cultura e o
turismo. Estas, neste momento, são as minhas grandes prioridades.
Vai deixar de tocar e de actuar em concertos nacionais e estrangeiros por isso?
Não, não vou deixar de tocar. Aliás,
devo dizer que Sua Excelência o Presidente da República fez questão de
incentivar, não só a mim, mas a todos os outros artistas que também são
membros do Conselho de Ministros. Eu fiquei muito feliz com as palavras
de Sua Excelência o Presidente da República. No entanto, também devo
dizer, na altura que assumi esta responsabilidade, decidi fazer quatro
concertos por ano. Neste momento, e devido à pandemia do Coronavírus,
estão todos os meus espectáculos cancelados, em Moçambique e no
estrangeiro.
No que ao ensino diz respeito, também vai deixar de ser professora convidada do projecto social Neojibá, no Brasil?
O projecto Neojibá, que é muito
importante e especial para mim, foi o que me ajudou a conhecer melhor os
projectos de inserção social, e foi aí onde eu comecei a trabalhar há
mais de 10 anos. Foi depois dessa experiência que eu trouxe o Xiquitsi
para Moçambique. Portanto, sim, vou ter de deixar de dar aulas nesse
projecto, não digo oficialmente, mas, devido às minhas
responsabilidades, é quase impossível conciliar as minhas actividades. E
esta foi uma das coisas que fez pensar antes de aceitar assumir o cargo
de Ministro da Cultura e Turismo. Eu sabia que muita coisa de que gosto
teria de ficar para trás. Tive de colocar tudo na balança, e a balança
pesou mais para o meu país. E se Sua Excelência o Presidente da
República convidou-me para assumir este cargo, é porque ele acha que eu
posso dar o meu contributo. E eu também acredito que posso dar um grande
contributo.
Ao assumir o cargo de
Ministro da Cultura e Turismo deixa, de facto, muita coisa para trás.
Por exemplo, os seus alunos do Xiquitsi. Como vai ficar este projecto?
Eu acredito que um bom projecto é
aquele que pode funcionar institucionalmente. Naturalmente que precisa
de um líder, mas não tem que ser, necessariamente, aquela pessoa… O
Xiquitsi é o meu bebé e é aquele projecto que criei com muito carrinho, a
pensar naquilo que deve acontecer no nosso país: a profissionalização
das artes. Como é que o Xiquitsi vai ficar? Muito bem. Tive todo o
cuidado, antes de me demitir do projecto Xiquitsi na qualidade de
directora, de encontrar as pessoas certas, que podem dar a continuidade
do projecto com a mesma qualidade artística que eu deixei.
Os mais optimistas,
sobretudo os artistas, quando foi nomeada pelo Presidente da República,
depositaram confiança em si. Muitos deles assumiram publicamente que
Eldevina Materula é uma boa escolha. Os mais cépticos assumiram que a
nova Ministra tem óptimas credenciais, entretanto “desconfiaram” da sua
capacidade em liderar um sector tão importante quanto é o da Cultura e
Turismo. O que lhe ocorre dizer sobre estas posições?
Estou muito consciente de que estas
duas vertentes vão sempre existir, faça eu o que fizer. No entanto, o
meu foco será sempre trabalhar para o desenvolvimento da cultura e do
turismo. Como todos sabemos, existe já directrizes e um plano económico e
social e nós já temos linhas de trabalho. E aqui também acrescenta-se a
minha visão e os meus conhecimentos enquanto artista, enquanto colega
de artistas e amante das artes. Portanto, existe uma visão e experiência
internacional e eu acredito que aí estão as mais-valias que posso
trazer para este trabalho. Mais do que isso, aos cépticos, aos felizes e
a todos aqueles que estão do outro lado, a olharem para mim, para este
Ministério e para o Governo, eu quero dizer que nos deixem trabalhar e,
depois, vamo-nos julgar. É a melhor forma. Há muito trabalho pela frente
e, por ironia da vida, penso que este ano será uma grande prova de
força e de criatividade, tendo em conta a realidade em que nos
encontramos.
Que ideias traz, primeiro, para a Cultura, e, segundo, para o Turismo?
Estas duas áreas vivem em paralelo.
Ambos os sectores alimentam-se um ao outro. Isto tem de ser uma certeza e
uma constante nesta liderança. Por outro lado, e falando da grandeza
cultural, nós somos um país onde cada província tem a sua expressão
cultural, cada província tem a sua força e manifestação cultural. Por
isso, mais do que tudo, sem fugir daquilo que eu acredito que tem de
acontecer, a cultura deve ter um grande dinamismo económico. O que eu
pretendo fazer é tornar a cultura um activo económico, tendo em conta
que o turismo está aliado a esta vertente.
Como?
Isto está dentro de um plano
estratégico. Moçambique está representado em várias feiras
internacionais e também temos o nosso FIKANI. Por razões óbvias, algumas
destas iniciativas estão canceladas um pouco por todo o mundo. Nesses
lugares, queremos mostrar o nosso belo Moçambique. Por outro lado, e
agora mais do que nunca, temos a internet. Queremos investir mais nesta
área para mostrar o turismo de Moçambique ao mundo. Garanto que estamos a
trabalhar neste sentido.
O que acha que os artistas gostariam de ver melhor no seu mandato e o que fará para o efeito?
Porque sou artista, converso com
muitos artistas e já vivi algumas questões, sei que há muita coisa que
eles querem ver. Penso que o tema da pirataria está em cima da mesa, os
direitos do autor, a sobrevivência dos nossos artistas, sobretudo em
momentos comos estes. Há uma série de leis que devem ser revistas e
regularizadas. Nós vamos, seguramente, trabalhar nesse sentido. Mais do
que tudo, devemos abraçar os nossos artistas e suprir as suas
necessidades. Os artistas esperam muito do Ministério. Eu sei e sinto
esse peso. Estar deste lado faz-me ver melhor as coisas. Não é uma
questão de eu cheguei e vou resolver as coisas. Já tive a oportunidade
de dizer a vários colegas artistas que podem contar comigo. Se eu estou
aqui, é para servir ao país. Neste caso, para servir a arte e a cultura
moçambicanas.
No dia da tomada de posse, o
Presidente da República disse: “Como uma pessoa conhecedora do impacto
da cultura na vida das comunidades, esperamos, igualmente, que use a
cultura como um instrumento dinamizador da actividade turística”. Quais
são as grandes estratégias?
Nós temos instrumentos que nos
regem. Nesses instrumentos já estão as directrizes. Queremos tirar as
mais-valias da ligação cultura e turismo. Há dias, eu conversava com o
meu grupo de trabalho. Eu disse-lhes que o turista, quando vem a
Moçambique, muito provavelmente não vem por causa das nossas praias;
muito provavelmente não vem à procura de sol. O que nós temos que os
outros países não têm? A cultura moçambicana. A nossa cultura só existe
em Moçambique. É isso o que move, o que traz e o que faz acontecer o
turismo no país. Vamos fazer valer e dar trabalho aos nossos artistas,
nas cidades e nas zonas rurais. Vamos criar condições para que o turismo
possa acontecer em todos os sectores de mais variadas formas.
Temos uma estrutura pensada ou devemos repensar para o efeito?
Está pensada, deve é ser aprimorada. Temos uma base e é partir dela que vamos seguir.
Uma das grandes pretensões
de Moçambique deve ser tornar o turismo acessível para os moçambicanos,
com pacotes que incluem facilidade de transporte ou logística em geral.
Neste sector, o que se pode conseguir nos próximos cinco anos?
O turismo é transversal. Esta tem de
ser a nossa base de consciência. Eu não posso chegar a este Ministério e
pensar que vou mudar o turismo ou melhorar o que quer que seja se eu
não estiver em estreita ligação com as outras instituições públicas, com
os transportes e até mesmo com a Agricultura e Desenvolvimento Rural.
Não posso. Não posso achar que vou fazer um trabalho sozinha. Há que
haver uma estratégia que me dê visão de onde vou trabalhar, onde vou
investir e para onde vamos. Queremos investir e muito no turismo
cultural. Sabemos que depende de um avião e do preço do avião. Por
exemplo, noutros países, o preço do avião mais hotel permite que as
pessoas, digamos, de nível médio, economicamente, possam fazer turismo
no seu próprio país. Temos consciência da nossa realidade e é nesse
sentido que iremos trabalhar para criar ou melhorar pacotes turísticos
que permitam que os moçambicanos conheçam o seu próprio país de forma
acessível e com qualidade.
Em 2016, foi condecorada com
a medalha da Ordem de Mérito pelo Presidente da República Portuguesa.
De Moçambique, como acontece consigo, há muitos artistas que não sabem o
que é uma distinção como aquela que recebeu de Portugal. Bem dito,
muitos artistas consagrados de Moçambique queixam-se muito da falta de
reconhecimento e até mesmo de apoio a nível nacional. A senhora Ministra
está consciente de que herda este “fardo”?
Tenho plena consciência disso. Eu
tenho plena consciência. Seria fácil eu dar respostas como vamos fazer e
vai acontecer… Mas eu não sou apologista das grandes promessas.
Sinceramente, eu quero aconselhar para nos deixarem trabalhar, e nós
estamos a trabalhar. Sua Excelência o Presidente da República foi muito
claro a quando da minha nomeação. Já disse aqui. Ele acredita que a
minha experiência será uma mais valia. É isso que temos de fazer:
trabalhar.
Qual será o estilo da sua liderança como Ministra?
Esta palavra é muito interessante. O
estilo de liderança... Não sei muito bem responder. Mas quem conhece os
trabalhos que eu fiz e a minha liderança sabe que trabalho em equipa e
em grupo. Tento o máximo possível ter qualidade de equipa. Essa será
minha aposta. Estou feliz com a equipa que tenho em meu redor. Vamos
fazer acertos.
Com quem mais quer contar, de facto, nessa equipa?
Com os artistas moçambicanos. Com
todos aqueles que cozinham e conhecem os nossos paladares e podem levar o
nosso país além-fronteira.
O mundo enfrenta,
actualmente, um momento muito delicado. O país inteiro está mobilizado
para combater a COVID-19. O que o Ministério está a fazer e pensa em
fazer?
Estamos a trabalhar com todos os
ministérios em medidas de contenção. Por exemplo, estamos a trabalhar
com o Ministério das Finanças e todo o Governo está a trabalhar para que
os artistas e o povo moçambicano em geral tenham o menor impacto
possível desta pandemia. Também estamos a fazer uma campanha de
prevenção com artistas e ainda faremos outra - na altura certa todos
saberão. Portanto, entre as mais diversas actividades que estamos a
realizar, e que algumas são públicas, o Ministério da Cultura e Turismo
lançou uma plataforma digital para proceder ao mapeamento das indústrias
culturais e criativas. O objectivo é conhecermos, termos acesso ao que
de facto está a acontecer no nosso país. Esta iniciativa é resultado,
também, do encontro com artistas que o Ministério da Cultura e Turismo
promoveu há dias para poder entender aquilo que se passa no sector
cultural, e assim melhor responder às necessidades do sector.
Quem pode ser mapeado?
Os artistas e promotores de eventos.
Assim, iremos perceber como a pandemia está a afectar o sector e como
podemos ajudar. Posso dizer que estamos a desenvolver muitas
actividades. Mas como eu, recentemente, aprendi que devo falar muito
pouco e agir mais, tenho a certeza que muito em breve vão poder ver em
casa o trabalho que estamos a fazer neste momento.
Com este mapeamento haverá ajuda financeira aos artistas?
O nosso objectivo é ajudar os
artistas a todos os níveis. E os que quiserem ser mapeados devem visitar
a página web e o Facebook do Ministério da Cultura e Turismo. Além
disso, faremos de tudo para que a informação seja partilhada através de
várias plataformas de comunicação. O mapeamento é para todos os
artistas, a nível individual e institucional. Com o apoio dos nossos
Secretários de Estado em todas as províncias, vamos chegar às regiões
com menos acesso à internet e vamos fazer a distribuição e recolha do
questionário necessário para o mapeamento.
Será necessário a pessoa provar que é artista?
Sim, será necessário, mas não é
difícil. O questionário é muito claro e vai nos permitir saber com quem
estamos a trabalhar e até mesmo entender quanto é que o artista ou
promotor, numa altura normal, ganha em termos de renda.
Como acha que a arte deve sobreviver a esta intempérie (COVID-19) sem que a saúde fique prejudicada?
Nós estamos num momento de
reinvenção. Temos de nos reinventar, considerando que a nossa saúde deve
sempre estar em primeiro lugar. Nós vamos sobreviver a isto. O povo
moçambicano é lutador e, por isso, eu tenho a certeza que, com todos os
esforços do Governo, vamos sobreviver a esta pandemia. Para o efeito,
temos de aceitar que este é um momento de paragem, de nos cultivarmos de
outras formas. É um momento de reflectirmos e de nos reeducar.
O Ministério não se esqueceu dos artistas…
Nós não nos esquecemos da arte e dos
artistas. Nós estamos a trabalhar para que a arte e a cultura não
parem. Não é um momento de desespero, é um momento de lutar e de
reflectir. Este momento menos bom vai passar.
A Ministra assume as funções
num momento terrível para implementar as suas ideias. Na verdade, este
ano está praticamente perdido. Como se sente diante deste cenário?
Sinto que tenho um papel de grande responsabilidade. Não me vou desesperar.Farei de tudo para que os artistas sejam apoiados.
Esta entrevista é gravada numa altura em que se comemora o Dia Mundial do Teatro. O que tem a dizer aos fazedores daquela arte?
Caros colegas do teatro, nós
queremos ver-vos e vocês sabem como chegar às nossas casas. E vocês têm
como chegar às nossas casas. Não apaguem a luz.
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